Eu nunca ouvi falar muito sobre anomalias dentro Rede. Mesmo passando horas e mais horas estudando-a, aquele tipo de falha parecia ser extremamente rara; ou talvez até mesmo apenas uma lenda. Dito isto, eu pensei que tinha sido culpa minha quando aquilo aconteceu. A Rede existe em diversos universos diferentes e por conta disso pode ser usada como um tipo de ponte por aqueles que sabem bem o que estão fazendo. Segundo os meus estudos, foi isso que Drakkon fez em uma outra dimensão (bem, em várias outras, visto que ele viajou de uma para outra matando todos os Rangers). Por mais que pensasse naquilo, eu não conseguia imaginar um motivo para que ele não tivesse alcançado o universo em que eu estava. Talvez fossem dimensões demais para ele conseguir viajar entre todas? A teoria de que ele preferiu evitar a fadiga me agradava, muito embora fosse apenas uma forma de tirar sarro da figura que se auto intitulou um "Lorde". Não me entenda errado, eu acho que ele fez a coisa certa, mas é inevitável não dar risadas desses caras vilanescos e seus títulos. Se eu fosse um vilão supremo da minha equipe, será que eu escolheria um título de efeito também? Feiticeiro Indesejado parecia pomposo, mas não me soou desagradável. Decidi anotar aquilo em um bloquinho de notas como um tipo de "ideia para o futuro". Não vamos desperdiçar um momento de inspiração, certo?

Mas voltando ao clarão, o timing foi um tanto quanto sugestivo. Não fazia tanto tempo assim que eu tinha acessado a Rede por conta própria para recuperar meus poderes, então minha primeira reação quando vi a realidade se estilhaçar foi "fudeu, estão vindo me cobrar". Não me agrada admitir isso, mas passou pela minha cabeça a ideia de me ajoelhar e implorar para os guardiões da Rede deixarem minha curiosidade passar batida só daquela vez. Não que aquilo tivesse mesmo alguma chance de funcionar se fosse o caso, mas até a luz no fim do túnel eu já estava vendo... se eu estivesse morto, não teria mais nada a perder; nem que fosse um pouco do orgulho junto com a cara de pau. Para minha felicidade, aquilo tudo se provou mesmo ser um problema, mas não algo relacionado ao que eu tinha feito. O lado ruim é que não tive mesmo tempo de comemorar antes de tudo escurecer e minha consciência desvanecendo.

A próxima coisa que lembro foi do barulho ruidoso do vento contra as minhas orelhas. Com um pouco de baba escorrendo no canto da boca, pensei estar em algum tipo de viagem aérea e cogitei apenas relaxar. Eu teria feito isso se não fosse a sensação de queda livre logo em seguida. Eu não diria que sou alguém espalhafatoso, mas o susto muda a gente, sabe? Me virei de súbito e desengonçado em direção ao chão tentando entender onde tinham me arremessado. Ficar inconsciente é mesmo uma aventura, né? Nunca imaginei que me arremessariam de uma nave depois de tirar um cochilo, mas imagino que exista uma primeira vez para tudo. Assumo que tentei cair de pé, mas essas acrobacias de herói nunca foram muito o meu forte então... bem, tive que me contentar em me chocar contra o solo.

Eu sabia que não estava sozinho porque vi outras pessoas caindo, então pensei que se eu fingisse desmaio talvez me deixassem em paz para seguir meu próprio caminho depois. Sendo assim, me mantive de olhos fechados e com o corpo relaxado por um bom tempo até ouvir vozes robóticas nos desafiando. As primeiras frases não foram nada demais e sozinhas não seriam o suficiente para me fazer ficar de pé, mas quando chegou aquela história de mercadoria e mãos pro alto eu percebi que talvez fingir desmaio não fosse a coisa mais sensata naquela situação. Fiel ao meu papel, contudo, me sentei devagar no chão e com uma mão na cabeça reclamei de tê-la batida no chão (o que, por sinal, não era mentira).

Olhando ao redor, percebi de onde as ameaças estavam vindo. Internamente, eu desejei estar realmente sozinho ali para poder descontar toda a frustração das últimas semanas naqueles caras. Externamente, no entanto, mantive uma expressão confusa e ligeiramente ingênua. As chances daquilo virar um combate eram altas, mas eu não conhecia aquelas pessoas e não pretendia deixar que soubessem das minhas verdadeiras intenções tão facilmente. O papel do novato burro e desajeitado esbanjava carisma, então tive que decidir rapidamente que tipo de pessoa eu tentaria parecer ser para aqueles estranhos. Não queria que tivessem grandes expectativas sobre mim, muito porque aquele não parecia mais ser o meu universo. "Mas ainda é cedo demais para assumir essas coisas", pensei.

Das duas garotas que pareciam ser minhas aliadas eu não tive muito o que reclamar, mas o outro cara era tão tagarela quanto Ayako, o Ranger Azul do meu antigo time. Nunca fomos os melhores amigos porque essa personalidade me irritava, então ter alguém falador em um momento como aquele por pouco não me tirou do personagem. Não demorei a me arrepender de ter decidido fingir ser alguém tão diferente, mas não pretendia mais voltar atrás.

— Quem são vocês? — perguntei olhando os humanos com uma expressão assustada antes de virar o olhar na direção dos robôs. Me arrastei ainda no chão alguns centímetros para trás, deixando que os mais "corajosos" fossem na frente. Desta vez, não por atuação, mas porque se aquilo realmente se tornasse uma luta eu preferia ter sacos de pancada para entender meus inimigos. O tagarela provavelmente seria o primeiro a cair na porrada, então que pelo menos servisse para me dar informações sobre aqueles robôs. Na pior das hipóteses, eu podia simplesmente virar as costas e fugir. Surpreendentemente, eu não estava me sentindo muito na vibe de confusão.

Ao que parece, aquelas pessoas não estavam muito afim de dar atenção a um pobre coitado assustado e caído no chão. Melhor pra mim, pensei, porque aquilo significava que eu estava passando batido e talvez se metesse o pé dali eles nem perceberiam. Duas coisas me impediram de fazer isso, contudo. A primeira delas foi o fato de não conhecer aquele lugar em que estávamos; se eu fosse encurralado por tantos inimigos sozinho, talvez eles conseguissem me vencer pela vantagem numérica. Respirei fundo em frustração só de pensar naquela hipótese e então me agarrei na segunda situação: essas pessoas não aparentam ter más intenções, então eu poderia me infiltrar entre eles e usá-los como um tipo de guarda pessoal até eu saber o suficiente sobre a situação para me virar sozinho (o que, modéstia à parte, não deveria levar tanto tempo assim).

Deixei então que os mais tagarelas e corajosos (inclusive, não é que aquele ali é um cara e não uma garota?) tomassem a dianteira. Eu queria ver quem eles eram, o que faziam e como lidavam com situações em que são pressionados como aquela. Um por um, todos foram tomando suas próprias ações e uma das minhas suspeitas se concretizou: eu não estava entre humanos normais, existiam Rangers entre eles. As chances de todos sermos Rangers é alta, supus, já que não deveria ser coincidência estarmos juntos depois daquele salto potencialmente dimensional e involuntário; algo tinha nos chamado para alguma tarefa. Os seres da rede, talvez? Dei uma risadinha ao pensar naquilo, no que logo tentei voltar à expressão assustada de antes; quais as chances dos seres da rede me chamarem para fazer algum trabalho para eles depois de eles próprios terem me banido? Não fazia sentido, então o motivo daquilo tudo tinha que ser algo muito maior que as picuinhas do meu antigo time.

Mas então devaneando demais, me desculpe. Fazendo jus à minha alcunha não requisitada de "Agente do Caos" que minha antiga equipe me deu, eu considerei que para ganhar a confiança daquelas pessoas eles precisavam me considerar útil ou pelo menos um igual. Fisicamente nossas diferenças eram óbvias — bem como nossas personalidades, mas isso é outra coisa —, então eu tinha que dar algo que eles conseguissem se identificar.

É, eu precisaria morfar. Aquilo deveria ser o suficiente para que me considerassem um aliado, então tentei não pensar demais nas consequências que tal decisão podia ter no futuro; seria útil para o meu presente e aquela era minha principal preocupação naquele momento. Com o celular arroxeado em mãos, eu o abri e coloquei ao lado da minha orelha. Em um sussurro (tentando mesmo não ser ouvido por ninguém no meio daquela confusão toda), movi os lábios e recitei aquela frase ainda estranha para mim, mas que agora simbolizava os poderes que alcancei por conta própria.

— Ó, tempestade interior, liberte-se ao meu chamado e transforme tudo em cinzas.


O estrondo de um relâmpago ecoou na minha mente antes de eu fechar os olhos e quando os abri eles eram como energia pura. Como eletricidade estática arroxeada, uma energia densa começou a percorrer todo o meu corpo. Apesar de formigar um pouco, me mantive focado enquanto as faíscas pulavam no ar e então se reuniam em minhas vestes. Linhas finas de energia crepitante parecia unir as faíscas umas às outras como uma agulha, costurando-as no meu corpo conforme o meu uniforme ia se formando. Tirado do chão pelo surto de energia, eu flutuei por alguns breves segundos antes de virar o rosto em direção ao céu. Um relâmpago certeiro desceu em minha direção e me atingiu em cheio, liberando um clarão súbito que ao fim revelou meu uniforme por completo. Com uma baleia exposta na lateral, o Zord que me escolheu como aliado estava claro.

E eu estava pronto.

Apesar daqueles poderes serem novos, eu me sentia confortável utilizando-os por se assemelharem ao que eu podia fazer quando ainda era um Ranger Rosa assustado. Sendo assim, eu tinha confiança o suficiente de que não ficaria para trás da ofensiva de nenhuma daquelas pessoas. O ponto é que eu só queria mostrar ser um deles e, por mais doloroso que tal decisão fosse, eu não queria que me considerassem o mais forte ou qualquer coisa desse tipo. Ser o novato atrapalhado seria muito mais fácil e menos suspeito; eu poderia sabotá-los de propósito e então choramingar que faço tudo errado. No pior dos casos, alguém mais esquentadinho iria vir para cima de mim e os pacificadores iriam me defender. Vai por mim, eu sei como essas equipes de Rangers funcionam.

Movi minha mão esquerda até a lateral da minha cintura, de onde puxei um tipo de caveira dourada que logo se revelou o emblema de um escudo composto de energia elétrica. Ligeiramente ruidoso, meu armamento defensivo foi empunhado para garantir que eu não me machucaria além do necessário. A mão direita, por sua vez, seguiu para o outro lado da cintura e girou sobre uma tranca, liberando-a. Um livro de aspecto antigo respondeu ao gesto se energizando com magia roxa e então flutuou rumo aos dedos que os libertaram. Com um mover sutil de mão, eu abri o grimório à minha frente sem sequer encostar nele e me de por satisfeito quando uma página específica surgiu.

— A-ataque de raio! — anunciei tentando soar pouco confiante. Por dentro do capacete, revirei os olhos, mas então abri um sorriso. Aquele papel de bobão seria cansativo, mas divertido... sobretudo se eles acreditassem mesmo em toda aquela encenação.

> Ataque Armado (Grimório): 1D20 + Carisma <
Alvos: dois dos soldados rasos mais próximos (mas vou errar um de raspão de propósito)

Sukune efetuou 1 lançamento(s) de dados (1d20.) :

Dois raios de energia dispararam por entre as páginas de grimório rumo àqueles robôs mais numerosos. Eu sabia que provavelmente acertaria os dois, mas aquilo seria um pouco demais então deliberadamente mirei em um deles um pouco mais para a direita. Acertar um poderia ser sorte, mas dois deixaria óbvia demais as minhas habilidades. Sincronizado com os disparos, mudei meu pé de apoio fingindo ter sentido algum tipo de "rebote" do ataque e perdido o equilíbrio rapidamente.